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10 junho 2007

Resumo: O USO DA AYAHUASCA em âmbitos 'espiritualistas apriorísticos' e 'em âmbitos ritualisticos empíricos'
Régis Alain Barbier

1. O uso da AYAHUASCA em ‘âmbitos espiritualistas apriorísticos’

Se refere ao uso consultivo sobrenaturalista em busca de contato com entidades tidas como sobrenaturais; ou ainda ao uso religioso sincrético moderno.

Implica alguma forma de hierarquismo e sobrenaturalismo. Aos personagens como xamãs ou mestres fundadores são atribuídos talentos de natureza ritual, mágico-religiosa. Essa revelação ou mediunidade se faz no intuito de realizar curas espirituais, do corpo e da alma, em busca de saúde, harmonia ou salvação.

Nesse âmbito espiritualista existe uma diferença essencial entre, de um lado, as figuras dos xamãs e mestres fundadores de cultos, e, do outro, a dos consulentes ou discípulos. Aos xamãs consulentes e mestres fundadores se creditam poderes extraordinários e, às vezes, uma natureza essencial especialíssima: como a peculiaridade de serem enviados, vindo de outro plano existencial, a serviço da vontade divina, em missão salvadora para guiar e atender as entidades do plano inferior ou ‘de baixo’.

Nessas diversas estruturas ritualísticas apriorísticas, o chá ayahuasca é considerado um veículo capaz de estabelecer um estado de ligação entre os discípulos locados no astral inferior e as entidades ou forças iluminadoras do astral superior. Esse efeito veicular, contudo, apenas aconteceria quando o chá fosse: 1) ingerido ou comungado – para uns até mesmo ‘preparado’ - com a necessária orientação e ritos; 2) e ainda de acordo com o dito ‘merecimento’ de cada um.

A ORIENTAÇÃO DOS TRABALHOS: DIRETIVA

A orientação pode ser de dois modos: orientação diretiva especial e orientação diretiva geral.

orientação diretiva especial

é uma supervisão mais ‘direta’, isto é ocorrendo na orientação pessoal e específica de um mestre talentoso. Talentoso por duas razões: 1) porque formado ou iniciado nos ritos e mistérios conectivos [ou, ao menos, em contato espiritual e ritualístico com um mestre fundador desencarnado e entendido como capaz de estabelecer essa ligação]; 2) por ter aptidão moral e congruidade própria suficiente para estimular e exortar os discípulos no sentido de galgar a ética necessária à recepção de tal merecimento.

orientação diretiva geral

é mais indireta i.e se estabelecendo na força mesmo da estrutura ritualística definida por uma linha tradicional ou (e) ensinada, determinada, no passado por um reconhecido mestre fundador. Nesse caso o direcionamento pode ser operar na forma de orações - preces e ladainhas – proferidas e cantadas em comum, de acordo com um modelo, ou forma geral predefinida.

ESTRATÉGIA DA PRÁTICA

· o embasamento é essencialmente teológico
· o adepto comprometa-se a aceitar e optar por se dirigido de acordo com a palavra ou orientação categórica das escrituras, ou dos mestres fundadores ou xamãs: compartilhando um sistema de crença, embasado em tradição e ideologia, num ato de confiança e fé.
· tende-se em busca do sobrenatural através do ritual (e uso do chá místico no âmbito das religiosidades usuárias de ayahuasca).
· opta-se pela escuta idealística i.e imbuir-se da idéia de um sujeito-transcendente, entendido como alma ou espírito, movido por objetivos codificados em mandamentos revelados.
· dá-se preferência aos dogmas das doutrinas, sempre predominando, sobre as inferências dos aportes sensoriais mais imediatos tidos como fundamentalmente incertos e muitas vezes ilusórios.

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Nesse sistema de crença e fé, o estabelecimento ou re-estabelecimento e manutenção da ligação entre os encarnados locados no astral inferior e as entidades ou forças iluminadoras ligadas ao astral superior (‘astral’ é expressão típica dos movimentos ayahuasqueiros) torna-se um dever sagrado compartilhado por mestres e discípulos. Os mestres e responsáveis comprometidos no dever de estabelecer e manter em atividade um âmbito religioso próprio e adequado a essa ligação; os discípulos comprometidos no dever de afirmar presença, colaborar, contribuir eficazmente e praticamente no sustento dessa consecução.

Tanto o estimulo doutrinário, exortando a boa conduta moral e social adequada ao acúmulo do merecimento necessário a um contato positivo e feliz entre os planos; quanto a freqüência ao templo e uso ritualístico do chá - como veículo regendo a realização mística desse contato - devem acontecer com regularidade e constância, ao longo de um período de vida suficiente; se possível a vida toda.

A eficácia do ritual, como guardião simbólico da porta entre os planos, se realiza no estabelecimento da ligação mística e no acesso à escuta da doutrina em condições entendidas como idéias. A finalidade se concretiza pela prática constante: a fieldade é necessária ao acúmulo final e manutenção do merecimento essencial à salvação escatológica: i.e ao destino final do espírito cuja missão é se reintegrar ao plano original no além.

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2. O uso da AYAHUASCA em ‘âmbitos ritualistas empíricos’

Se refere ao uso igualmente em meios ritualísticos, embora de natureza mais filosófica do que teológica, investigando a compreensão e apreensão das virtudes e valores éticos, mas removendo os teleologismos(explicação dos seres pelos fins a que aparentemente são destinados) dogmáticos e sobrenaturais; ou deixando essas extrapolações sem definições (agnosticismo).

O uso da Ayahuasca num âmbito espiritualista empirista não se fundamenta na crença de que possa haver conhecimento espiritual proveniente originalmente de fora do âmbito da experiência humana, possível em geral, e natural.

Recusa-se (ou na hipótese de existirem, desconsidera-se) a existência de tais princípios esotéricos e divinos como ponto de partida de uma busca.

Não se creditam razões superiores e divinais em si, no sentido de determinismos puramente sobrenaturais ou supranaturais, oriundos de uma instancia superior. Entende-se que todas as doutrinas foram ultimamente ditadas por alguém. O âmbito espiritualista empirista implica alguma forma de monismo naturalista: uma ausência de hierarquismo essencial ou sobrenaturalismo.

Nesse âmbito espiritualista empírico, os personagens equivalentes aos xamãs ou mestres fundadores das abordagens espiritualistas apriorísticas não são entendidos como portadores de talentos mágico-religiosos; nem tampouco se atribuem tais talentos [nem os ‘revelam’ - no caso de existirem].

Em geral, esses fundadores de movimentos éticos orientadores da ação humana, podem ser reconhecidos e aceitos como indivíduos possuidores de habilidades específicas: como serem capazes de motivar e influenciar pessoas a refletir profundamente; a se por em relação de integridade e coerência com elas mesmas; no sentido de evoluir de acordo com uma escolha livre e consciente de valores éticos: no intuito de realizar em si mesmo, por si mesmo, estados melhores de bem estar, de cura psicossomática, de harmonia ou eutimia (sossêgo de espírito).

Nas estruturas ritualísticas empíricas, o chá ayahuasca é considerado um agente facilitador; um amplificador de perceptividade, por permitir a instalação de um transe fenomenológico capaz - de acordo com a intenção dos usuários e praticantes - de estabelecer um estado de consciência ampliado permitindo uma forma de iluminação: no sentido de galgar-se mais autonomia e maioridade nas suas opções existências, escolhas e necessidade de superações.

Não se considera existir uma diferença essencial, de natureza espiritual, entre, de um lado, as figuras dos xamãs ou mestres fundadores de cultos, e, do outro, a dos demais integrantes dos movimentos.

ORIENTAÇÃO DOS TRABALHOS: ATIVA NÃO DIRETIVA

A orientação dos trabalhos pode ser dita ativa, mas não diretiva. Isso porque:
1) é facilitada e estimulada pelo contexto aonde os integrantes concordam em cumprir os rituais de abertura, andamento e fechamento; predispondo-se a aplicar a vontade própria na busca de mais domínio ético;
2) ingerindo o chá psicoativo de acordo com o controle e vontade própria: isso, tanto em termo de freqüência de uso quanto em relação à escolha da quantidade a ser ingerida.
3) cada participante é considerado como capaz de pôr-se em contato com o mistério mais profundo do estado de ser e de ter aptidão de sustentar um padrão de conduta ética resultante de uma escolha e decisão madura, inteligente e consciente. A orientação ativa não diretiva opera na forma de meditação e contemplação buscando um encontro profundo consigo mesmo, com a natureza e com o outro; estudos temáticos; diálogos coordenados ou reflexões espontâneas; atividade simbólica e ritualística. Na pratica, a orientação ativa não diretiva ocorre através de uma conjunção desses diversos fatores, de acordo com a vontade e os acordos deliberados dos participantes.

ESTRATÉGIA DA PRÁTICA:

· Na prática espiritualista e ritualista empirista, o embasamento filosófico predomina e supera o embasamento teológico negando distinção apriorística, dogmática (irracional), entre um plano ontológico absoluto - tido como sobrenatural - e a natureza.
· Entende-se, antes de tudo, de uma certa forma e num plano mais profundo, que existe ‘o ser se auto-observando’.
· não existe uma profunda distinção entre natural e sobrenatural [negando-se o sobrenatural como absoluto]; não existe uma distinção profunda entre o sujeito e o objeto; nem tampouco uma distinção profunda entre o intelecto racional e sensível.
· não se almeja vir a existir num futuro indefinido fora do plano concreto e planetário: tenta-se contribuir para fazer dele o que deveria ser à luz da melhor razão natural e escolhas.

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Em geral, não há, na prática espiritualista e ritualista empirista, dificuldades ontológicas ou naturais extraordinárias impedindo sobremaneira a instalação de um sentimento profundo de união em seu ser com a natureza: nega-se a possibilidade de se conhecer a existência de um plano sobrenatural; todos já bem sabem o que é ‘ser humano’ por experiência própria e imediata.

Não se almeja existir fora do plano existencial onde se nasce e surge: tenta-se contribuir para fazer da existência como já se manifesta o que se imagina que deveria ser à luz de uma ética naturalmente razoável.

Tentando começar por si mesmo: estudando a ‘relação’ consigo mesmo, ou mais exatamente a qualidade do ‘estar consigo’ em primeiro lugar. Depois a relação com o próximo - os familiares e os que diretamente convivem; com os colegas; com as pessoas em gerais; com a natureza: sempre em busca de uma maior aceitação, harmonia, e satisfação conjunta.

O fator determinante é a inteligência de reconhecer que na situação existencial real (a impermanência e fluidez de todas as coisas) a melhor opção e certamente zelar, enquanto a vida perdura, por uma convivência e relação sensata – equilibrada; cordata; respeitosa e pacifica - com todos os seres.

A sessão psicofísica com a substância psicoativa é um meio para visitar um estado inabitual e surpreendente de percepção e consciência, construindo uma ampliação referencial e existencial [cujo valor só pode ser julgado diretamente e por cada um] servindo de aporto suplementar, de enriquecimento experiencial, a partir de onde se empreende exames renovados e enriquecidos, mais lúcidos, da situação e vivencia atual, reavaliando-se principalmente:
1) suas próprias crenças, refletidas em imagens, símbolos e insights;
2) os seus comportamentos, reações, processos e dificuldades de adaptações;
3) os critérios e os valores da sua axiologia ética;
4) as suas atitudes e hábitos.

Todas essas aprendizagens permanecem como conhecimento adquirido por experiencia própria, modificando genericamente todas as relações no sentido de ampliar os valores em termos mais inclusivos e perspectivas mais profundas; na direção de maior harmonia e tolerância.

Esse aspeto cognitivo positivo, bem sentido, somado a um comprometimento definido de acordo com uma escolha livre e consciente de valores éticos, permite a instalação de uma aceitação e reconhecimento mais profundo e sereno dos seus próprios talentos e limites; o surgimento um estado de ser mais completo e assentado, mais satisfatório.

CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS

Enquanto que o adepto das formas apriorísticas de religiosidades necessita aprender as virtudes teológicas como a obediência, a confiança, a fé, a esperança, caridade e constância; o adepto das formas empiristas necessita aprender a gerar outras e antigas virtudes.

Nesse caso, trata-se antes de tudo de ‘irradiar sentido’ em vez de buscá-lo - ou no mesmo compasso: é necessário se fortalecer e firmar; adquirir confiança e saber buscar inspiração, criatividade, força - matéria prima espiritual -, para gerar sentido a cada dia, nas relações: sempre renovando. Faz parte da prática empirista chegar o tempo de saber quando parar de estar em ‘estado de busca’ entrando-se em ‘estado de ser’, simplesmente. Apesar de sempre possíveis aportes novos e de natureza conjunturais, referentes às elaborações criativas de momentos específicos atravessados na vida, o rumo básico, a estrutura ética fundamental resultante de uma escolha profunda: essa deve ser burilada de momento a momento.

Em ambos os casos, tanto na religiosidade apriorística quanto empirista, trata-se de uma prática diária, de uma superação, e não essencialmente da apreciação – agradável ou não – de um estado privilegiado de ampliação da consciência à luz do chá psicoativo.



PODER VEGETAL realiza seus trabalhos num âmbito ritualista empirista . poder.vegetal@hotmail.com

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