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10 dezembro 2006

RELIGIÃO E RELIGIOSIDADE

A religião é a sua própria história. Não é algo que tem história, é algo distinto da história. Dito de outro modo, a religião não possui referenciais objetivos intersubjetivamente observáveis. Não há um conhecimento religioso para historiar, há apenas condutas dos seres humanos acerca de referenciais inexistentes, criados em sua imaginação. Assim, na verdade, pode-se apenas falar em história dos povos religiosos e de suas crenças. Os supostos referenciais religiosos são incognoscíveis no sentido rigoroso deste termo, isto é, não são observáveis mediante a experiência e um método próprio, como a ciência, por não serem observáveis por vários indivíduos simultaneamente ou coordenadamente.

A mineralogia, ou a botânica, por exemplo, podem ser referenciais reais de uma história, porque existem como entes naturais, independentes da imaginação humana e à margem da história dos homens. No curso do tempo, seu conhecimento foi se estendendo, ampliando-se e aperfeiçoando-se pelas contribuições historiáveis de investigadores sucessivos.

Ao contrário das plantas e dos minerais, os referenciais religiosos não têm potência real, ou seja, existência própria, porque são o produto da imaginação criados pela mente humana no âmbito da consciência subjetiva, e por isso resultam constitutivamente inacessíveis a qualquer tentativa de conhecimento que se ajuste às regras indispensáveis da observação intersubjetiva, controlada pela razão.

Em conseqüência, uma história da religião não pode ser nada mais do que a descrição diacrônica (1) dos precipitados mentais da especulação milenária, a partir de uma ilusão. Assim só se pode escrever com rigor _ em termos epistemológicos (2) uma história ímpia das religiões, ou seja, uma história crítica das especulações religiosas da humanidade que apresente em seus respectivos contextos as formas dessa ilusão.

As formas da ilusão religiosa giram sempre em torno de dois eixos: a existência de almas e a existência de deuses. Provavelmente, já na primeira alva da humanidade, o homo-sapiens, recém chegado a seu habitat original, pôs em marcha um lento processo de observação sobre experiências de todo tipo, que, o levou a “inventar” a alma: a crença de que, além do corpo existe um princípio vital separável, invisível e volátil que não segue a mesma sorte do corpo nem na vida nem na morte. É a “invenção” animista, que satisfazia plausivelmente as modestas exigências de racionalidade do homem pré-histórico e, ainda que fosse objetivamente falsa, conduziria a atitudes que seriam a ante-sala da religião, porquanto essas almas se apresentavam no crisol (3) de sua imaginação como poderes sigilosos ou ocultos que interferem, com vontade própria, na conduta e no destino dos seres humanos.

As chamadas vivências ou sentimentos religiosos nascem em virtude da associação da hipótese animista com práticas coletivas dirigidas para propiciar a benevolência dos espíritos ou para neutralizar a sua malevolência. Eram práticas que combinavam a súplica com o exorcismo e a magia, e que logo cristalizaram em rituais que expressavam conjuntamente reverência e temor.

As almas eram supostamente dotadas de poderes extraordinários ou excepcionais e, além disso, supunha-se que estavam adornadas de qualidades numinosas que configuravam um espaço misterioso, sagrado, que as situava, algumas, acima das demais. E assim emergiram os deuses, inicialmente indefiníveis e imprevisíveis, porém, pouco a pouco, modelados e integrados segundo esquemas de hierarquia em paralelo com as estruturas políticas e sociais do clã ou tribo. Logo surgiu a idéia de uns poucos deuses superiores, vinculados especulativamente a impostantes funções simbólicas na vida individual e coletiva. À medida que se refinavam as capacidades de fabulação religiosa, os deuses se incardinaram (4) em complexos panteões politeístas.

No curso histórico das grandes culturas com escritura, a recorrente e ininterrupta especulação mítica _ estimulada pelo desejo de sistematizar o domínio do sagrado _ se orientou, quando se deram circunstâncias favoráveis, para a elaboração de formas monoteístas de pensamento.

A emaranhada selva das religiões, apresentada tanto pela fenomenologia cultural como pela história, tem sido defendida pelos apologistas da “verdade” como prova concludente da existência real do divino, que seria o ingrediente comum à consciência íntima de todos os homem em todos os tempos. Nesse contexto, a religiosidade viria a constituir um atributo essencial do ser humano, e a religião um universal antropológico-cultural. Porém esta falaz pretensão não é nada mais do que é, ou seja, uma falaz pretensão.

Tal leitura, interessadamente distorcida, configura a infra-estrutura hermenêutica (5) da explicação das formas evolutivas da religião como expressões progressivamente adequadas à idéia de Deus ou da transcendência, ao divino, ao longo de um trabalhoso caminho percorrido pelos homens no processo de educação do gênero humano.

Trata-se, na verdade, de reconduzir arbitrariamente o exuberante e inverossímel mostruário da fantasia religiosa _ com suas gratuitas hipóteses, suas falsas contradições e suas aberrantes conclusões _ a um imaginário processo ascendente, pelo qual os seres humanos iriam se aproximando de Deus e de sua verdade absoluta e definitiva.

Contudo, a análise crítica das religiões apresenta um testemunho irrefragável (6) da autoria humana e não divina das mesmas, que mostra os extravios da razão quando esta prescinde de suas regras de funcionamento e dos seus critérios de racionalidade. Sobre a plataforma do animismo, os homens erigiram um monumento à irracionalidade e ao erro, que ainda continua pesando sobre suas cabeças em largos espaços do planeta, mesmo nos dias atuais. Seus suportes seguem sendo o medo, o desejo e a esperança, que constituem a síndrome eficazmente estimulada pelas igrejas, destras no negócio de capitalizar as debilidades humanas.
João Laurindo De Souza Netto
www.agnosticismo.com.br

(1) diacrônica _ de diacronia = sucessão dos fatos através do tempo.
(2) Epistemológico _ relativo à epistemologia = estudo crítico do alcance objetivo das ciências ; teoria das ciências
(3) Crisol _ vaso de material refratário destinado a operações químicas, a altas temperaturas
(4) Incardinar _ incorporar, admitir em uma corporação.
(5) hermenêutica _ ciência que interpreta os textos, sobretudo os textos sagrados.
(6) Irrefragável _ incontestável.

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